Conversava com o professor aposentado da Escola Agrotécnica, Antônio Carlos há algum tempo, quando vimos uma pessoa idosa, bastante conhecida na cidade, que mal conseguia erguer os pés, arrastava-os. Meu interlocutor comentou: “É, logo vamos perder o fulano”. Meses depois, de fato, deu-se o desenlace. Não sem antes passar por todos aqueles aborrecimentos que antecedem à morte: não poder andar, perder a autonomia para as coisas mais triviais, ficar na dependência de cuidadores.
Não deixou, no entanto, de me cativar, a expressão usada por Antônio Carlos“ vamos perder alguém”, quando esta pessoa não é membro da nossa família.
É assim mesmo que deveria ser. Já que fazemos parte de uma comunidade, a morte de um dos seus integrante é uma perda para todos.
O fato de alguém estar arrastando os pés me leva a uma outra reflexão. Numa roda de políticos, há alguns anos, alguém perguntou se o Senador Eliseu Resende seria candidato ao Governo do Estado de Minas Gerais, já que disputara o pleito para o mesmo cargo, nas eleições de 1982, quando perdera para Tancredo Neves. Um outro respondeu: “O Eliseu? Este, coitado, já está chutando tampinhas.” Demorei um pouco a perceber que a expressão referia-se à decrepitude que antecede à morte.
Já não vejo mais tantos chutadores de tampinhas na cidade, seja por que o estado lastimável das nossas calçadas não permitem o livre trânsito de pedestres, turbinado pela hostilidade do trânsito de veículos, em número cada vez mais crescente, seja pela vaidade dos cidadãos mais velhos, que não querem expor publicamente a sua deficiência, já que velhice virou sinônimo de estorvo.
Eu acho muito boa a convivência com os velhos. A gente aprende muito com eles. Há, evidentemente, aqueles que só falam em doenças. A mais perfeita definição de chato, para mim, foi dada por Millor Fernandes: “chata é a pessoa a quem gente pergunta como vai e ela explica.” E tem também os que querem supervalorizar o seu tempo de juventude, como se fosse o melhor dos mundos. Ledo e ivo engano, as coisas de antanho eram muito mais complicadas e difíceis. Invoco aqui a genialidade do poeta Mário Quintana: “Ah, bons velhos tempos!/ Ora, os tempos são sempre bons/ Os velhos é que não prestam mais.”
O retratista nonagenário Maurílio Brichese(será que ainda existe esta profissão?), grego de nascimento, mas que de há muito abraçara Muzambinho como sua terra, vaidoso, mantinha – para a inveja dos carecas precoces ou não – uma vasta cabeleira e um bigode bem aparado, apesar da idade provecta, longe estava de chutar tampinhas.
Estava, o sr. Maurílio na fila do Banco do Brasil, pouco antes do seu falecimento. “Seu Maurílio – disse-lhe – o sr. não precisa ficar na fila, o sr. tem noventa anos. Prá que – responde-me – não tenho nada a fazer. O que vou fazer lá em casa? Aqui, pelo menos, tenho a oportunidade de encontrar alguém para bater um papo.”
No geral, a convivência com os mais velhos é muito frutífera. Eles trazem nos gestos, no olhar e nas palavras a resignação. O amanhã para eles é o amanhã mesmo, simples assim, sem nenhuma outra conotação. E esta sensação de viver o aqui e o agora com tudo o que a vida se nos apresenta é um longo aprendizado para todos nós.
Que gostoso é sentir que se “combateu o bom combate”, só fazer o que se gosta, simplesmente flanar ao sabor dos acontecimentos do dia, sem remorsos, sem ressentimentos ou ansiedades. Cecília Meireles fala melhor: “Eu canto porque o instante existe e minha vida está completa.”
Instintivamente, estes velhos percebem que nada podem contra temas tão aflitivos e dramáticos que atormentam o comum dos mortais e que estão distantes da sua reduzida força. Optam, assim, no mais das vezes, pela introspecção.
Guerras, revoluções, luta de classes não são mais com eles. Suas vidas estão completas. Aguardam, placidamente, o dia em que serão levados, não sabem para onde. E este “onde” há muito deixou de ser objeto de suas preocupações. Suas almas estão serenas e seus corações não guardam rancor.
Como fazíamos na infância, aprendamos a chutar tampinhas com categoria.
NILSON BORTOLOTI (PROFESSOR APOSENTADO,
ex-prefeito e ex-vereador em Muzambinho)