Muzambinho, 20 de setembro de 2024

Crônica de uma Partida: Do interior à capital​, a saga da família Abreu

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Começa a saga dos Abreus, quando o Joel foi visitar a sua família e a cidade de Muzambinho, lá pelas bandas do Sul de Minas. O ano era o de 1972, logo no início, em janeiro, quando o irmão que morava em Brasília aportou na Rua Capitão Heleodoro Mariano, nº 1.094, para trazer um  desafio à família. Família bem grande, fiel ao padrão mineiro daquela época. A nossa passou um pouco do ponto, com doze irmãos, dos quais Ozias, Mina Maé e Ester já eram casados.
​Qual foi esse desafio? Mudança – na acepção plena da palavra. Mudança de cidade e de perspectiva de vida. Muzambinho, cidade encostada na fronteira com o Estado de São Paulo, cuja cultura corrente de cidade do interior sul mineira era perder seus filhos para São Paulo, para o mercado  industrialque absorvia facilmente seus migrantes e imigrantes, acolhendo seus novos moradores vindos de quase todo o Brasil e do mundo. Ou, talvez, a cidade de Campinas, que igualmente se constituía como um centro promissor de mão de obra e aflorava tambémcomo uma cidade universitária.

​Joel expõe suas razões para que a família pudesse mudar para Brasília. Capital da República, com muitas oportunidades de estudos e trabalhos. Cidade que oferecia futuro para quem fosse para o Planalto Central do País.

Cidade com menos de doze anos. Jovem, bonita e com um traçado nada igual no Brasil. Ruas largas e longas, prédios agrupados em quadras residenciais. Cenário bem novo e bem diferente daquele que nós
estávamos acostumados a ver (a Av. Dr. Américo Luz, as ruas de paralelepípedos, as ruas sem pavimentação, (de terra batida mesmo); além dos cenários bucólicos como Cambuí, pastos, riachos e estradinhas de terra, que eram o visual habitual dos habitantes daquela aconchegante Muzambinho do início dos anos 70.

 

​As razões eram bem claras para todos: a necessidade de estudos para o Daniel, que era muito inteligente e já com sinais claros para uma brilhante carreira acadêmica . E a preocupação visível da dona Diva em relação à possibilidade de perder seus filhos para São Paulo ou Campinas. Era o caso do Samuel que já manifestara desejo de seguir o curso natural dos seus amigos que compartilhavam sonhos em sair de Muzambinho. Esses jovens queriam seguir carreira militar na Aeronáutica.

​A outra possibilidade também era a de irmos para Manaus,  que na época surgiacomo uma ideia igualmente a ser considerada, por causa da sua Zona Franca, instalada muito recentemente. Mas isso foi logo descartado pelas dificuldades de irmos até o Norte do País. E também por Manaus não era exatamente aquilo que se buscavapara o futuro dos filhos: estudo. 

Sentaram-se à mesa  os filhos, o Tenente Abreu (nosso pai) e dona Diva (nossa mãe),  excetuando Izaias e Eliza, que certamente estavam brincando de “irmãozinhos”(brincadeira que eles inventaram e a faziamcom certa frequência). O debate foi breve e a decisão foi rápida – Brasilia será o nosso destino.

 

Quem era Tenente Abreu? Homem muito conhecido pela cidade. Todos nós éramos reconhecidos assim: filho ou filha do Tenente Abreu. Logo de cara ganhava respeito e um certo temor. Homem valente, não tinha medo de nada. Nem das assombrações que eram figuras frequentes nas rodas de conversa entre os moradores. Pai de muitos filhos com dona Diva. Tiveram dezoito. Homem que participou de três Revoluções (24, 30 e 32). Integrante da Força Pública de Minas Gerais nessas Revoluções. Perdeu muitos amigos  nesses combates.
Foi ferido por bala, na retomada da capital paulista, contra o horror da Coluna Prestes. Além das insígnias militares, o Tenente Abreu era amante do cultivo das frutas, dos legumes e das hortaliças. Produzia-os com fartura e distribuía com abundância a quem precisasse. O homem era uma mistura de valentia e bondade. Firmeza e generosidade. Figura sem igual naquelas bandas.
Quando meu pai ouviu a conversa do Joel, não hesitou em concordar de pronto, bem como não demorou para sair para arrumar um caminhão de mudança. Foi à casa dos Maxixes para participar da decisão e para pré-contratar o transporte para a eventual mudança.

Após decisão tomada em ir para Brasília, houve a preocupação acerca dos custos dessa empreitada. Vendo  os parcos recursos financeiros que a família dispunha, ficou muito evidente que a família Abreu não teria o suficiente para seguir adiante com esse plano.

Contudo, o Joel não hesitou em pegar um ônibus e partir para  São João do Ivaí, cidade bem no interior do Paraná. Onde  Ozias (nosso irmão mais velho) morava e trabalhava, como gerente do Banco Nacional já há um bom tempo. À luz das enormes facilidades que temos hoje de deslocarmos por via área, pode parecer simples esse deslocamento do Joel. Mas não era bem assim naquela época. Para sair ou chegar a Muzambinho só tinha um jeito: enfrentar as estradas de terra sinuosas por todos os lados. Por isso essa viagem também foi uma grande aventura. Muzambinho-São Paulo-Curitiba-Maringá-São João do Ivaí, que era cercadapor rios. O nosso viajante teve que pegar até uma balsa para chegar ao seu destino. Levou mais de um dia para estar nas terras do Paraná. Mas o Joel chegou e foi muito bem recebido pelo Ozias.

Cansado da longa viagem e ansioso para relatar ao Ozias a decisão da família, começou a exposição sobre a mudança da sua família para Brasília. Ozias ouviu com certa surpresa. Aproveitaram também para recordar as suas travessuras da infância – como as fugas das disciplinas do Tenente Abreu, os bailes no Clube Recreativo, os jogos de sinuca no Bar Avenida e muitas outras mais. A conversa da mudança voltou à tona e o irmão mais velho não só aprovou a decisão, como também se colocou à disposição em ajudar.

Oba! Era tudo que o Joel queria ouvir. Percebeu o momento oportuno e propôs pedir-lhe um empréstimo para cobrir as despesas com a tal mudança. Disse-lhe que seria um empréstimo sem prazo determinado para pagamento e com muita chance de ser um fiado ad aeternum. Ozias franziu a testa e não fez cara de quem aprovava a proposta descarada do Joel.

Silêncio na sala… Após  um curto período, mas para o Joel parecia uma eternidade, o nosso irmão bancário sorriu e falou que não  emprestaria nada. Joel sentiu um frio na barriga. Sorriu novamente e disse-lhe que não emprestaria nada, mas sim daria o dinheiro como forma de participar também dessa sábia decisão. Joel pulou de alegria, pegou o dinheiro e retornou imediatamente  para Muzambinho, sem dar nenhuma chance para o Ozias se arrepender dessa doação. Numa expressão mais genuína mineira: picou a mula dali rapidamente. Retornou a Muzambinho.

​A família toda esperava com muita expectativa o retorno do Joel. O assunto voltou à mesa para as considerações finais. Decisão tomada e com o dinheiro arrumado com o irmão tido como o rico da família, agora era questão de marcar a data e seguir com o plano.

Joel seguiu para Brasília com o objetivo de arrumar uma casa para abrigar a família Abreu. E logo arrumou na QSA 05 casa 7, no centro de Taguatinga, cidade satélite de Brasília. A 21km do Plano Piloto (como Brasília é chamada em relação às suas cidades satélites). Era um sobrado na cor azul, recém construído pelo Sr. José Veiga. Sua família morava em cima e na casa de baixo ficou para nossa família.

 

E a data foi marcada para o dia 17 de fevereiro de 1972.
E numa quinta-feira, ensolarada, partiam Maé,que sempre apreciou muito estar nas estradas, Samuel e Roque Maxixe (dono do caminhão Chevrolet). Não tínhamos muitas coisas para transportar. As camas de solteiro e  outros poucos móveis seriam comprados em Taguatinga.

O relógio cuco de parede  não podia deixar de estar no caminhão da mudança. Meupai comprara ainda quando os mais velhos eram crianças. Era relíquia da família que até hoje está pendurado na casa da minha mãe.
​Saíram bem cedo com destino a Brasília. Passaram por Uberaba e pernoitaram na casa da Neném, nossa irmã por parte de pai.

Na sexta-feira, seguiram para Brasília, passando por Itumbiara, Goiânia, Anápolis, Alexânia e, finalmente, chegaram aTaguatinga, no final da tarde do dia 18 de fevereiro de 1972.  

Deixaram a mudança na futura casa, em Taguatinga, e seguiram para o Plano Piloto para se encontrarem com o Joel, que morava na SQS 312, bloco J. Endereços novos que iríamos acostumar muito brevemente. Saíram para jantar no Conjunto Nacional, shopping recentemente construído e um dos primeiros no Brasil.

Quando o caminhão partiu, naquela quinta-feira, dia 17 de fevereiro de 1972, o restante da família: meu pai, minha mãe, Nice, Bete, Daniel, Nata, Izaias e Eliza seguiam para a casa da Mina, com quem era casada com João Ruela. Eles tinham três filhos na época (Sérgio, Sonia e Joãozinho).

Ficamos na casa da Mina, de quinta até segunda-feira, dia 21/02/72.

Que dias históricos! Despedidas dos amigos, da igreja e da cidade.

Quando, naquela segunda-feira 21, o diaamanheceu e, antes mesmo de embarcarmos numa Kombi para sermos levados a Casa Branca, para pegarmos o trem que nos transportaria até Brasília, meu pai reuniu toda a família para orar e pedir a Deus proteção para essa viagem. Escolheu a Mina para ler o Salmo 121:

 

 

Deus, o nosso protetor

 

Olho para os montes e pergunto:

“De onde virá o meu socorro?”

O meu socorro vem do Senhor Deus,

que fez o céu e a terra.

Ele, o seu protetor,

está sempre alerta

e não deixará que você caia.

O protetor do povo de Israel

nunca dorme, nem cochila.

O Senhor guardará você;

ele está sempre ao seu lado

para protegê-lo.

O sol não lhe fará mal de dia,

nem a lua, de noite.

O Senhor guardará você

de todo perigo;

ele protegerá a sua vida.

Ele o guardará quando você for

e quando voltar,

agora e sempre.

​A Mina mal conseguiu terminar a leitura, seu rosto já estava encharcado por lágrimas que insistiam em ser derramadas. Emocionados, todos ficaram com coração apertado, mas também felizes em saber que o salmista declarava benção de Deus sobre nós.

​Após ouvir esse profético Salmo de Davi, abraçamos nossos anfitriões e, finalmente, entramos naquela condução que nos levaria para o futuro.

​Parece que naquele momento estávamospisando na linha do tempo, numa divisão entre passado e futuro. Era uma mistura de saudade e expectativa do novo e da esperança, tudo isso no mesmo sentimento.

Partida e despedida eram palavras que intensificavam seus significados naquele instante.

Todos acomodados dentro daquela Kombi. Partimos,enxugando lágrimas. Porém elas eram mais visíveis no rosto da Mina. O vazio e a tristeza já estavam tomando conta do seu coração.
​Despediam, naquela manhã de segunda-feira, os seus pais, os seus irmãos. Rompiatambém  a agradável convivência de muitos anos. Incluindo as noites de sábado, quando oJoão e a Mina deixavam seus filhos para ir ao cinema.

​O veículo que transportava sua família desaparecia da sua vista.

A Mina não aguentou, saiu pela cidade para desafogar seu pranto. Criou raiva momentânea do Joel, por ele ter tido essa ideia da mudança.  

       Percebeu que a cidade estava igualmente triste. Mesmo assim andava por ela para recompor suas emoções. Lembrou que há pouco tempo, o João recebera uma oferta do Banco, onde trabalhava, para uma agência de outra cidade. Lembrou também que ficou muito feliz por essa possibilidade não ter tido êxito. Porque seria muito triste  deixar os seus pais e irmãos. Mas agora era o contrário, ela estava sendo deixada.

Veio-lhe a vontade de mudar-se de Muzambinho o mais breve possível.  

​Se recompôs, enxugou o rosto. Retornoupara sua casa e para sua vida de esposa e mãe.

​Mulher guerreira, aguentou, superou e venceu. Um ano depois, estavam ela e seus filhos nos visitando em Taguatinga, Estava frio, era julho de 1973, vieram trazer o calor da saudade e o abraço carinhoso. Retornaram para Muzambinho e não muito tempo, a família Ruela se mudava para Caxambu.

​Naquele mesmo ano de 1973, desciam no aeroporto de Brasília a Ester e seus  filhosgêmeos Ricardo e Regina, para a sua primeira visita à família, em Brasília. Não muito tempo depois, Ozias e sua família vieram  nos presentear com suas presenças: sua esposa e seus três filhos: Ricardo, Marcos e Carlos Eduardo.

A Kombi, com os ilustres passageiros da família Abreu, vencia as curvas e as montanhas de Minas. Já eram quase três horas de viagem quandocomeçamos a avistar Casa Branca. Logo já estávamos na Estação de trem daquela cidade.
Surpreendentemente estava estampado na parede da estação esta frase:  “O futuro se constrói sempre no presente”. Era para nós o conselho. Estávamos exatamente naquela circunstância: construindo o nosso futuro.

​O relógio da estação batia 14horas, quando entramos no trem Bandeirante, que vinha de São Paulo,  e nos levaria até Brasília.
 

Ao passar por Uberaba, na estação, tivemos a grata surpresa de estarem à nossa espera a família da Neném (com o seu marido Dé e filhos) e a família do tio Abreuzinho (irmão do nosso pai), sua esposa  e filhos. Foi rápido, mas marcante. Recebemos o caloroso abraço e o apoio dos parentes de Uberaba.

​De Uberaba para o destino Final: Brasília.

​Passamos a noite dentro daquele trem, que tinha suas mordomias: assentos confortáveis, corredores livres para caminhar, janelas amplas e com vistas. Eu e a Eliza nos deliciávamos tomando guaraná gelado no restaurante do trem. Parecíamos crianças das mais felizes do mundo.

​Finalmente chegamos, no dia 22 de fevereiro de 1972,  por volta das 13h, à Estação Ferroviária do Núcleo Bandeirante, uma das cidades satélites do Distrito Federal. Lugar que parecia mais cenário de filme de faroeste, com suas residências de madeira de dois andares.

​Joel e o seu amigo Waldemar Vilas Boas nos aguardavam pacientemente na plataforma daquela estação de trem.

​Pisamos em solo brasiliense, a nossa Terra Prometida. O passado ficou para trás  e, finalmente, colocamos as plantas dos nossos pés no futuro.

As palavras do Salmista se cumpriam. Deus nos abençoou desde aquele dia memorável para nós. O Senhor foi o nosso protetor e nos guardou na viagem e na vida que se seguiu à frente. Reservou um futuro brilhante para todos nós.

Não obstante as perdas que tivemos, fomos vencedores na nossa trajetória e detentores de uma história abençoada em Brasília.

Aqui, constituímos famílias, criamos filhos e netos.

Deus honrou nossa geração, ontem, hoje e sempre.

​Izaias Abreu (Brasília/DF) 

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