Muzambinho, 18 de setembro de 2024

O começo do futebol feminino

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“Prática atentatória à dignidade feminina.”  (Crítica estampada em jornais, na década de 50, ao pioneirismo das atletas araguarinas)

Acompanhando   pela   televisão, dia   desses, peleja  futebolística   entre   as   seleções femininas do Brasil e Canadá, em preparativos para as Olimpíadas de Tóquio, onde os dois times voltarão, provavelmente, a se confrontar, bateram-me forte na memória velha de guerra imagens dos começos dessa prática esportiva entre nós, geradora de espanto e críticas acerbas na época, ou seja, há mais de meio século. Reconto o que aconteceu.

Anos   50.   As   mulheres   de   Araguari   deram   o   primeiro   passo.   Melhor   dizendo, o primeiro chute. Pagaram pesado tributo pelo ousado pioneirismo. O desafio às regras acabou   virando   caso   de   polícia.   Suscitou   condenações   amplas.   Até   o   “Correio Católico”, de   Uberaba, diário   com   13   mil   assinantes, famoso   pelo   seu comprometimento   com   mudanças   sociais, tomou   partido   contrário   às   atletas araguarinas.   Inseriu   na   linha   editorial   críticas   ao   futebol   feminino.   Este   escriba mesmo andou arrancando algumas tiras das teclas gastas da Remington portátil para recriminar “a prática atentatória à dignidade feminina”. (Abro   parêntese para confessar, em lisa   verdade, que me arrependo   pacas   dessa atitude retrógrada, machista a mais não poder, como tantas outras que, debaixo da indiferença e complacência gerais, ocorriam costumeiramente nos anos anteriores ao advento   da   pílula   e outras   benfazejas   conquistas   no   reconhecimento dos direitos femininos. Fecho parêntese, com alívio).

 

Voltando a Araguari. O jogo de bola reunia número grande de adeptas. Dava pra fazer   uns   três   times.   Não   faltava   às   moças   apoio   de   cidadãos   influentes, não contaminados pelo vírus do machismo ou do moralismo farisaico. O mais conhecido entre eles era o excelente praça Mário Nunes, jornalista, vereador, que chegou à presidência   da   Câmara   da   simpática   Araguari.   Ele   propagava   as   partidas, com entusiasmo, em resenhas remetidas para tudo quanto era jornal, das acontecências na cidade. A antiga CBD, antecessora da CBF (com sua penca de dirigentes enrolados nas malhas da Justiça), pressionada pelos protestos, entendeu de opor-se à novidade. Editou um “dogma esportivo” com o propósito de fazê-lo cumprido pelas autoridades competentes: futebol não é coisa de mulher. Que a ridícula proibição não poderia ser definitiva, os tempos e o bom senso acabariam por demonstrar. Embora ainda não estruturado   nos   conformes   desejáveis, o   futebol   feminino   é   hoje   realidade.

Consolidou-se a partir do escrete que o Brasil armou para os Jogos Olímpicos de Atenas, disputados no início do século XXI. As   sucessoras   das   anônimas   meninas   de   Araguari   –   cujos   nomes   não   ficaram guardados na memória – deixaram marca frisante naqueles jogos. No certame e em outros torneios mostraram, exuberantemente, que o futebol é um esporte que pode, sim, a exemplo de tantos outros, ser praticado por mulheres, com a graça e leveza que lhes é peculiar, dentro de coreografia agradável ao olhar, sem se despojar da mesma empolgação das competições masculinas. Em não poucas ocasiões as meninas do futebol   brasileiro   encantaram   multidões   com   eletrizantes   gingas   de   corpo, com arrancadas   inesquecíveis, numa   cadência   enlevantemente   feminil.   Reafirmaram, numa versão inesperada, a certeza de que este é mesmo o país do futebol.

Fico a imaginar   que já está passando   a   hora da   organização   de   um campeonato brasileiro de futebol feminino. Aposto e dou lambuja, como era costume de dizer-se em tempos de antigamente, que não faltará torcida para aplaudir os eventos.

Por derradeiro, registro que se foi possível à atleta Marta conquistar várias vezes o prêmio máximo internacional conferido a uma atleta, para isso concorreu, de algum modo o vanguardeirismo e a ousadia das meninas de Araguari, hoje seguramente vovós respeitadas e admiradas no concerto comunitário.

 

Cesar Vanucci  – Jornalista, [email protected]

 

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