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Ninguém sabe de onde ele veio. O fato é que quando apareceu na cidade já tinha seus trinta e poucos anos. Chegou, como diz o outro, com uma mão na frente e outra atrás. A única bagagem era uma velha mala, daquelas bem antigas, cheia de livros. Por falta de ter onde dormir, encontrou um pouso no cemitério. Nas primeiras semanas dormiu em cima de um túmulo. Depois, quando o inverno chegou, encontrou abrigo num mausoléu que ninguém visitava. Sem nenhuma cerimônia, colocou um colchão em cima da tumba, fez um fogareiro no canto, improvisou uma estante para guardar os livros, puxou um ‘gato’ para ter luz lá dentro e fez do mausoléu o seu lar, doce lar. No começo o povo se admirou e alguns até se indignaram com o que chamaram de heresia: “onde já se viu?? Invadir assim o campo sagrado e incomodar o sono eterno dos nossos antepassados??” Mas ele tinha algo diferente. Era educado, gentil, atencioso e parecia sofrer verdadeiramente com cada funeral que acompanhava. E ele acompanhava todos. Todos mesmo! Sempre guardando uma certa distância, mas sempre presente. Muitas vezes o viram chorando silenciosamente na hora da última despedida, quando o caixão é fechado pela última vez. Se emocionava especialmente nos funerais de crianças e jovens. E era um choro verdadeiro, sentido, que vinha do fundo da alma. Por isso também, um certo mistério foi se criando em torno dele. Será que o choro, por pessoas que ele não conhecia, era provocado por lembranças terríveis de perdas parecidas? Ninguém jamais perguntou, e ele também nunca falou a respeito, mas assim ele foi conquistando a simpatia e a gratidão das famílias enlutadas, que encontravam nele a solidariedade e o consolo tão necessários nesses momentos. Descobriram que o nome dele era Amado. “De que família?” perguntaram. “Da família Nervo”, respondeu. Ninguém nunca havia ouvido falar de tal família mas todos aceitaram. E, como o nome indicava, ele passou mesmo a ser amado por todos. Era como se fosse um membro da família que passou muito tempo longe e retornou num momento difícil. Numa ocasião, por obra fatal do destino, um acidente matou um jovem casal de namorados e ambos foram sepultados juntos, na mesma campa. Desta vez, com os olhos marejados, ele se aproximou dos caixões, abriu as páginas de um livro e recitou, com a voz serena e segura:
“Tu me olharás silenciosamente
E eu te olharei também, com nostalgia
E partiremos, tontos de poesia
Para a porta de trevas, aberta em frente
Ao transpor as fronteiras do segredo
Eu, calmo, te direi: Não tenhas medo
E tu, tranquila, me dirás: Seja forte.
E como dois antigos namorados
Noturnamente tristes e enlaçados
Nós entraremos no jardim da morte”
O soneto de Vinicius de Moraes teve o efeito de emocionar e também de acalmar os corações. E a partir de então, em todos os enterros ele lia um soneto, um poema, um versículo… E parecia então que os verdadeiros poetas estavam ali, lendo suas próprias obras, tal era a emoção e empenho com que ele declamava. Foi assim que Fernando Pessoa, Mário Quintana. Manuel Bandeira, Gabriela Mistral, Hilda Hilst, Pablo Neruda e tantos outros passaram a frenquentar os funerais no pequeno cemitério. E foi assim também que aquele desconhecido que morava numa tumba se tornou ainda mais querido e amado pelas pessoas da comunidade. Ofereceram emprego, casa para morar, companhia para passar as noites, e ele recusou tudo. Como era bem apessoado, até casamento ofereceram. Mas ele escolheu continuar vivendo solitário no cemitério, na companhia silenciosa dos mortos e dos livros que lia todas as noites sob a tênue luz da lâmpada amarela que iluminava a tumba. E muitos anos se passaram até que um dia, num funeral, não o viram por perto. A família do morto não queria baixar o caixão sem a presença dele e, principalmente, sem ouvir um poema que, por certo, acalmaria seus corações. E era tamanha a aflição que todos deixaram o túmulo já aberto, com o caixão ao lado, e se dirigiram até o mausoléu que servia como morada para o poeta desconhecido. Quando chegaram, o encontraram sentado, com a cabeça levemente inclinada em direção ao peito e um livro aberto nas mãos. Não havia mais vida ali. Apenas um bilhete onde se lia: “façam das últimas frases desse poema, o epitáfio que me define” E assim, uma placa foi afixada naquele mausoléu e, nela, inscrito o poema escolhido pelo homem que acalmava corações.
“Perto do meu ocaso, eu te bendigo, ó vida,
porque nunca me deste esperança falida
nem trabalhos injustos, nem pena imerecida.
Porque vejo no fim de meu rude caminho
que fui eu o arquiteto de meu próprio destino;
que se os méis ou o fel eu extraí das coisas
foi que nelas pus mel ou biles amargosas:
quando plantei roseiras, não colhi senão rosas.
Às minhas louçanias vai suceder o inverno;
mas tu não me disseste que maio fosse eterno.
Julguei sem fim, as longas noites de minhas penas;
mas não me prometeste noites boas apenas,
e, afinal, tive algumas santamente serenas…
Amei e fui amado, o sol beijou-me a face.
Vida, nada me deves. Vida, estamos em paz”
O mausoléu, antes esquecido, se tornou ponto de visitação. Muitos levavam flores, faziam orações, limpavam o lugar e tiravam fotos junto à placa. Alguns garantiram que até milagres alcançaram por intermédio do poeta desconhecido. Muito tempo depois descobriram que o poema que se transformou em epitáfio se chamava “Em paz”. Obra do poeta mexicano Amado Nervo, pseudônimo de Juan Crisóstomo Ruiz de Nervo. Que morreu no distante ano de 1919. Procuraram então nos arquivos da história e viram incrível semelhança entre os dois ‘Amados’. Coincidência? Reencarnação? Homenagem póstuma? Ninguém sabe. O que todo mundo sabe, entretanto, é que nas entrelinhas do poema, existe a reflexão de quem, no ocaso da vida, olhou para trás e se sentiu imensamente gratificado por tudo que viveu.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.

(Raul Dias Filho)
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com

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