Enquanto escrevo, ouço lá fora o barulho da chuva que cai desde ontem, sem parar. É uma chuva fina e constante. Abençoada. Depois de uma longa e penosa estiagem, ela vem para diminuir a secura do ar, abaixar a poeira e molhar as plantas. Mas traz, junto com ela, a expectativa de um frio congelante. E o temor de que possa provocar uma geada como há muito tempo não se vê. Tomara que não, até porque muitos produtores ainda contabilizam os prejuízos da semana passada, quando a queda na temperatura queimou cafezais sem fim pelo sul de Minas. A diferença é que, semana passada, não teve chuva antes da geada. E essa combinação, chuva antes de uma queda brusca e intensa da temperatura, forma a chamada ‘tempestade perfeita’ para uma geada negra. Esse termo, que assusta os agricultores, surgiu em 1975, quando uma geada como nunca tinha sido vista varreu o Paraná e dizimou milhares de alqueires de cafezais, provocando a erradicação da cafeicultura em algumas regiões do estado. Ela tem esse nome, geada negra, porque congela a água da chuva acumulada no solo, no tronco e nas folhas dos pés de café. Em algumas condições pode congelar até a seiva da planta. Com isso o vento frio, e às vezes o próprio sol, se encarregam de queimar as folhas, os ramos, o caule e até a raiz da planta. A paisagem fica escura, como se tudo tivesse sido varrido por um fogo incontrolável. Essa geada de 1975 provocou mudanças profundas na economia e na própria história do Paraná. Na época, sem alternativas, milhares de trabalhadores e agricultores deixaram o estado e foram tentar a sorte em outras regiões menos afetadas pelo frio. Até então, o Paraná competia com Minas Gerais em relação à área plantada e produção de café mas, a partir daquele desastre, a agricultura no estado passou a ser dominada pelo trigo, soja e milho, culturas menos sensíveis às baixas temperaturas. Mas que empregam menos trabalhadores e são praticamente inviáveis para os pequenos produtores. Essa lembrança trágica serve como alerta para todos nós em relação às mudanças climáticas que afetam, cada vez mais, nosso dia a dia. Já tivemos verões quentes demais ou invernos rigorosos ao extremo. Temporadas com muitas chuvas ou estiagens prolongadas. Nada disso é novidade. A questão é que isso vem se repetindo cada vez com mais frequência e intensidade. Dia desses os termômetros marcaram 54 graus centígrados num vale da Califórnia, nos Estados Unidos. Isso nunca tinha sido registrado antes. Sem falar nas enchentes na Europa e nos incêndios na Austrália. Alguns desses desastres a gente vê, ano ou outro, na televisão e pensa: ‘problema deles’. Não, cara pálida, o problema é nosso. Ou você acha que aquele incêndio que devastou nosso Pantanal também foi obra do acaso? E que esse frio congelante e essas geadas negras são ‘coisas que acontecem desde sempre’? Alguém pode dizer: “você mesmo falou de uma geada negra de 1975. Então isso não é novo, ó arauto das geadas”. E eu vos direi no entanto: de fato, fenômenos climáticos acontecem desde sempre. Só que o próprio nome já diz: fenômeno! Ou seja, coisa rara, esporádica, que acontece de vez em quando e olhe lá. Mas estas situações estão se repetindo e se intensificando ano a ano. Na última década já foram registradas 5 geadas potencialmente prejudiciais para a agricultura no Brasil. E isso só acontecia uma vez a cada dez anos, como a geada negra de 75, por exemplo. A gente só se dá conta do desequilíbrio quando ele nos atinge diretamente, seja com uma estiagem prolongada ou com uma geada negra. Todos sabemos que a causa desse desequilíbrio é, basicamente, o desmatamento. Desde que os portugueses desembarcaram por aqui e se encantaram com o pau brasil que esta terra é desmatada sistematicamente. São mais de 500 anos cortando árvores, fazendo queimadas e derrubando florestas. E no momento em que a natureza se rebela, que o mundo pede providências, que as pessoas mais e mais se envolvem em torno da causa da preservação, alguém decide, aqui no Brasil, que é hora de passar a boiada. E nos coloca no paradoxo de sermos donos das maiores reservas de água doce do planeta; de termos os maiores rios e os maiores aquíferos e, de lambuja, termos ainda a maior floresta do mundo como patrimônio. E de termos, ao mesmo tempo, um ministro do meio ambiente investigado por tráfico internacional de madeira. Não é à toa que chegamos onde chegamos. Geadas piores virão. Afjnal, como bem diz o ditado, onde passa boi, passa boiada.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
(Raul Dias Filho)
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
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