Ainda não era quatro da manhã quando Florêncio abriu os olhos, sentiu o ar gelado entrando pelas narinas e saiu debaixo das cobertas. Que diabo de frio era aquele, ele pensou, enquanto acendia o fogão de lenha que, em breve, iria lentamente aquecer a cozinha com paredes altas e teto sem forro. A casa fora construída por ele mesmo, muitos anos atrás, numa baixada que ficava perto da roça de café que ele plantou, pé por pé. Mas a casa não foi construída assim, de uma hora para outra, não. Para desespero da mulher, Rosa, Florêncio demorou quase um ano para escolher o lugar exato para construir. Para acalmar a mulher, ele dizia, ternamente: ‘tenha paciência, minha Rosa. Nós vamos viver aqui o resto da vida. Então vamos fazer bem certo e com muito cuidado ” E o certo, para ele, era calcular tudo. Até a posição do sol quando nascia e quando se punha atrás do morro onde ficava o cafezal. Já no inverno a casa era iluminada pelo sol desde o amanhecer até o cair da tarde, deixando as paredes aquecidas e ajudando a suportar o frio cortante das madrugadas. Um pouco abaixo da casa, corria um ribeirão de águas frias e rápidas. À noite, quando ele se ditava com Rosa, escutavam o doce murmúrio das águas, formando corredeiras no leito cheio de pedras. A casa, que era pequena no começo, ganhou um cômodo aqui, outro ali, à medida em que os filhos foram chegando. Na varanda, Rosa fizera um lindo jardim, com flores silvestres e orquídeas de variadas cores e formas. Florêncio amava verdadeiramente tudo aquilo. E pensava em como o destino havia sido generoso com ele. Sozinho na vida, ele conhecera Rosa enquanto trabalhava como ‘apanhador’ numa colheita de café. Um olhar aqui, um rabo de olho ali, e a paixão desabrochou. Ele dava boas risadas quando contava aos filhos como tinha sido o xaveco para conquistar a mocinha bonita que ‘apanhava’ café perto dele:
“Qual sua graça?
Eu? Rosa.
Uai, então vai dar certinho. Ocê é Rosa, eu sou Florêncio. Se ajuntá nóis dois a gente forma um jardim”
Rosa achou graça daquela cantada e pensou que há muito tempo ninguém a fazia rir. E aquele moço sempre a alegrava. Eles ainda não sabiam, mas a história do jardim fazia todo sentido. Desde muito antes, quando Rosa nasceu bastarda. A mãe dela, bonita e altiva, havia sido abusada pelo patrão, um fazendeiro casado que ainda a ameaçou de morte caso contasse sobre a gravidez. Na época, a mãe de Rosa não se abalou. Altiva, respondeu na hora:
“Não quero nada de você. Nem seu dinheiro e muito menos seu sobrenome. Minha filha nunca vai te conhecer. Ela não merece saber que o pai é um estuprador. Ela vai ser uma flor em botão, pura, linda e muito digna”
E foi com essas palavras na cabeça que, meses mais tarde, ela chegou ao cartório para registrar a filha recém nascida. Quando o escrivão perguntou o nome da menina, ela respondeu, com um sorriso:
“Rosa. Rosa em botão”
O escrivão a olhou por cima dos óculos redondos com lentes ensebadas, arqueou a sobrancelha, em dúvida, mas abaixou a cabeça e escreveu: Rosa Embotão. Escrito dessa forma mesmo, tudo junto, Embotão! Quando alguém perguntava se o sobrenome tinha origem africana ou indígena, Rosa dizia:
“A origem é o sonho de minha mãe, uma mulher linda e cheia de amor”
Florêncio se encantou com Rosa, com a história dela e com o sobrenome dela também. Tanto que decretou: “quando nosso jardim florescer, o sobrenome de todos os nossos filhos vai ser também o seu: Embotão”
Combinaram também que Rosa escolheria os nomes das meninas. E Florêncio, o nome dos meninos. Como o combinado não é caro, foi exatamente assim para todos os filhos. Primeiro veio uma menina, que Rosa chamou de Margarida. Margarida Embotão. Pouco mais de um ano e chegou um menino, que Florêncio batizou de Narciso. Depois vieram Violeta, Lírio e, por último, Hortência. Todos bonitos, ativos e alegres. Todos, Embotão. Florêncio e Rosa tinham imenso orgulho do jardim que plantaram e viram florescer. Margarida e Narciso já estavam na faculdade. Ela, sonhadora e romântica como a mãe, escolheu Letras para cursar. Narciso, afeito às coisas da terra, passou no vestibular para agronomia. Ambos em faculdades públicas. Os outros, ainda com pouca idade, ajudavam em casa e na lavoura de café. Mas naquela madrugada gelada, todos ainda dormiam quando Florêncio terminou de acender o fogão a lenha, pegou o bule e o coador de pano embaixo da pia e abriu a torneira para preparar o café. E ficou preocupado quando percebeu que não saiu nenhuma gota da torneira. A água estava congelada nos canos. Lá fora estava geando. Uma geada como ele nunca havia visto. Tão forte, tão intensa, que Florêncio percebeu pequenas placas de gelo no vidro da janela. O orvalho que escorria do lado de fora do vidro também havia congelado. Florêncio pensou no café que havia plantado e que o sustentou durante toda a vida. E em como ele precisava daquela safra para pagar as dívidas que se acumularam nos últimos anos. Mas pensou também que nenhuma lavoura conseguiria resistir a tanto frio. Ele se lembrou de conversas onde antigos cafeicultores contavam sobre pés de café que tiveram até as raízes queimadas por uma geada inclemente e duradoura, décadas atrás. E foi pensando nisso que ele contou os minutos até o dia amanhecer. Quando os primeiros raios de sol iluminaram a casa na baixada, Florêncio calçou as botinas, vestiu um casaco grosso por cima da camisa de lã, colocou um chapéu na cabeça e saiu, cabeça baixa, caminhando devagar em direção ao cafezal. Ele ouviu passos, olhou para trás e viu que Rosa o seguia. E ao lado dela, caminhavam todos os filhos: Margarida, Narciso, Violeta, Lírio e Hortência. E eles vinham sorrindo, mãos dadas, como a dizer ao pai ‘calma, sossegue o seu coração. Estamos aqui com você! Vai dar tudo certo”Quando finalmente chegaram ao cafezal, ficaram parados, admirados, vendo tudo aquilo. Os pés estavam viçosos, com folhas verdes e galhos cheios de flores que pareciam ainda mais brancas sob a luz do sol que já aquecia a manhã. Durante muito tempo, ninguém ali na região conseguiu entender nem explicar como a geada mais perversa dos últimos tempos queimou tudo ao redor, plantas, hortas, árvores, plantações de café e de milho menos a lavoura de Florêncio. Também não afetou o jardim de Rosa. Que durante muito tempo continuou dando lindas flores em botão.
Ps: meu abraço e minha solidariedade aos produtores da região que, esta semana, viram suas lavouras serem afetadas por uma das mais fortes geadas dos últimos anos.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
(Raul Dias Filho)
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
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