Outro dia vi no jornal uma notícia que me surpreendeu: a de que a maioria dos alpinistas que morrem tentando escalar o Everest naõ se acidentam na subida, mas na volta, depois de já terem alcançado o ponto mais alto do mundo. E não são poucos os que morrem durante a perigosa aventura. Desde que foi conquistado pelo neozelandês Edmund Hillary e pelo sherpa Tenzing Norgay, em 1953, o Everest já viu 311 alpinistas perderem a vida em suas encostas. O fato da maioria ter morrido quando já estava descendo intriga muitos especialistas, já que no caminho para baixo os efeitos da altitude são menos rigorosos e os caminhos, melhor demarcados. Sei lá, não sou especialista no assunto mas tenho comigo que uma das causas é a autoconfiança. Escalar o Everest é a maior conquista que um alpinista pode alcançar na vida. Além das tempestades inesperadas e da temperatura, que pode chegar a 50 graus negativos, é preciso se ambientar ao ar extremamente rarefeito. Na altitude máxima do Everest, a 8.848 metros de altura, a concentração de oxigênio no ar não ultrapassa 7%. Nenhum ser humano consegue ficar nestas condições por mais de uma hora sem auxílio de um tubo de oxigênio. É mais perigoso, mais difícil e mais extenuante do que qualquer um de nós possa imaginar. Por isso imagino que, depois de colocar os pés lá em cima, o alpinista inicia o caminho de volta ainda inebriado pela façanha e, desconcentrado, cometa pequenos deslizes que, no Everest, acabam sendo fatais. E digo isso por experiência própria. Não que tenha escalado o Everest, longe de mim tal devaneio, mas no longínquo ano de 2007 fiz parte de uma expedição que escalou o Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil. Tudo bem que, perto do Everest, nosso pico é um anão metido a gigante. Mas um anão de respeito, com seus 2.994 metros de altura. Na época, nossa expedição teve o apoio de 4 integrantes do Grupo de Instrução de Guerra na Selva do Exército Brasileiro, baseado em Manaus. Homens treinados para sobreviver na selva nas mais críticas condições. Pra se ter uma ideia do nível dos caras, basta dizer que forças militares do mundo inteiro mandam seus melhores homens para estagiar com os ‘selvas’ de Manaus. Ao todo, o grupo tinha 10 pessoas. Saímos de São Gabriel da Cachoeira e navegamos 6 horas até chegar ao ponto mais próximo da montanha. Mas ‘próximo’ é só jeito de falar, porque a partir daquele ponto nós caminhamos durante 3 dias até chegar à base da montanha. Três dias caminhando, sempre subindo, passando por atoleiros, comendo barra de cereais e dormindo em barracas encharcadas. Na manhã do quarto dia fizemos o ataque ao pico e aqui cabe uma explicação. O Pico da Neblina não oferece muitas dificuldades técnicas para a escalada. Em um ou outro ponto existem algumas bordas de precipício e lugares de acesso mais difícil mas, no geral, qualquer pessoa com bom condicionamento físico consegue fazer a escalada. Era por isso que estava ali. Como tinha me preparado bem, embora com bastante sofrimento consegui acompanhar o grupo até o pico. Foi uma sensação maravilhosa conquistar aquele objetivo. Saber que você está num ponto icônico e onde poucas pessoas conseguem chegar. A sensação só não foi melhor porque o frio era intenso e, justificando o nome, o pico estava completamente envolto pela neblina e não conseguimos desfrutar da vista. O platô no pico é bem pequeno, coisa de uns 10 metros quadrados, e ali montamos as barracas e nos tornamos a primeira equipe de televisão a escalar, acampar e passar uma noite inteira no topo do Pico da Neblina. Aliás, o pico fica na terra indígena dos Yanomamis, bem perto da fronteira com a Venezuela, e é chamado pelos índios de Yaripo, que significa ‘montanha do vento’. E à noite, a montanha justificou plenamente esse nome também. O vento soprou forte, muito forte, a noite inteira, dando a impressão de que, em algum momento, arrancaria as barracas. Mas quando o dia amanheceu, o céu estava claro, não havia mais neblina e ficamos diante da visão maravilhosa que só o ponto mais alto do Brasil poderia nos oferecer. Depois de desfrutar daquela beleza e registrar as imagens, inclusive a foto que ilustra esta coluna, iniciamos a descida, passando exatamente pelos mesmos pontos por onde havíamos subido. E foi num desses pontos que o inesperado aconteceu. Para alcançar a trilha que ladeava um precipício era preciso descer um pequeno barranco, com pouco mais de um metro e meio de altura. Para descer, me sentei na borda do barranco, apoiei as mãos e soltei o corpo, com cuidado. Mas me esqueci que tinha uma mochila nas costas. Quando soltei o corpo, ela resvalou no barranco e me impulsionou para a frente, praticamente me empurrando em direção ao precipício. Não tinha como parar e já estava vendo a imensidão lá embaixo e me despedindo do mundo quando senti algo me puxando para trás. O sargento do grupo Guerra na Selva, atento, agarrou a mochila presa em minhas costas e me puxou com força. Tão forte que caí sentado e ali fiquei uns 20 minutos até que minhas pernas parassem de tremer e coração desacelerasse um pouco, antes de recomeçar a descida. Foi nessa ocasião que o sargento disse que, ao contrário do que muita gente imagina, a descida de uma montanha é mais perigosa que a subida, por causa do relaxamento natural e do excesso de confiança. São esses fatores que provocam a desconcentração. Descobri ali, naquele episódio assustador, que da mesma forma, assim são todos os retornos, independentemente de serem escaladas, viagens ou passeios. Já percebeu que, embora o percurso seja o mesmo, a volta sempre parece mais curta e rápida que a ida? Um dos motivos é justamente a desconcentração. Você já percebeu quase todos os detalhes na ida, então não se preocupa com eles na volta. E muitas vezes perdemos a oportunidade de ver as coisas por outro ângulo. E esta lição serve especialmente para o duro momento que estamos vivendo na pandemia. Depois de tanto tempo de esforço para cumprir o isolamento, a vacinação agora nos dá o alento que tudo isso pode, finalmente, ter um fim. E esse novo horizonte não pode, de forma alguma, nos desconectar da realidade de que a doença ainda está aí e, enquanto ela estiver, devemos manter os mesmos cuidados de antes. É como uma escalada. Já fizemos a parte mais difícil, que exige mais esforço. Agora é hora de começar a descida. Mas sem esquecer que continuamos na beira do precipício. E qualquer desatenção pode nos empurrar para baixo. É nossa vida que está em jogo. Esperemos um pouco mais. Daqui a pouco a neblina se dissipa, o vento para de soprar tão forte e, embora exaustos, poderemos iniciar o caminho de volta para a normalidade. Até lá, mantenha o foco, a concentração e os cuidados. E cuidado com a descida.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
(Raul Dias Filho)
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
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